A Queda

A Queda

Nada se movia.

Não havia som.

Não havia luz.

Mas eu senti a minha mortalidade e isso me assombrou. Afinal, como eu poderia definhar?

Sentado à beira do Abismo vi uma imensidão de gases flamejantes e aglomerados densos, ali eu senti o medo pela primeira vez. Não me orgulho disso, mas eu tentei fugir e somente as luzes me entenderam…

No fim, de nada adiantou, pois foi a bela luz daquela estrela que me prendeu, e foi a sua morte que me fez cair. Pouco a pouco, a Queda foi me cegando, e os meus olhos que uma vez já carregaram a Sombra mais negra foram clareando até que, cego, cheguei ao fundo do Abismo. Meus olhos agora eram cinza. Ouvia a gargalhada distante do Destino como uma vibração maligna em minha cabeça, senti minhas memórias se fragmentando enquanto uma forma vermelha se espalhava sobre elas.

Derrotado, me deitei no Tempo e adormeci ao vento guardando um lamento sussurrado ao Momento.

***

Gentilmente toquei seus lábios, eram macios e convidativos. Estava chovendo e as gotas escorriam pelos seus cabelos, percorriam sua face, emolduravam seus belos olhos verdes. Aqueles cabelos ondulados ardiam numa cor escarlate e contrastavam com a pele pálida.

Cometi erros para chegar aqui.

Lembro-me de ter ficado deitado naquela praia onde Caí. O céu estava escarlate, o solo arenoso era tão branco e macio e as ondas eram de um místico azul esverdeado. Minha cabeça doía e um sussurro parecia crescer entre minhas lembranças. Dor. Meu Fardo. Meu presente do Fado. Tempo sempre pareceu confuso para mim.

 

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Desenho feito por João Luís de Lima Carvalho

Fonte dos Lamentos

Fonte dos Lamentos

Naquele momento de infinitude pude sentir a mortalidade dos segundos, tão efêmero e intenso… E então, num piscar de olhos, você se foi e me deixou só. Mas a luz verde que eram os seus olhos permaneceu, e ali, numa âncora perfeita, me prendi de volta à minha existência terrena, desta vez vivendo e não apenas existindo…

A chuva caía delicadamente; constante, mas gentil. Sentado naquele banco de madeira do parque observei a paisagem melancólica da tarde. A chuva lavava lentamente o cinza do olhar e o cinza da minha vista enquanto preguiçosos raios de sol conseguiam vencer as densas nuvens de chuva e iluminar o efeito cristalino das gotas nas árvores. O gotejar era incessante e parecia querer me embalar a um sono profundo, mas eu sabia muito bem que apenas pesadelos me aguardavam.

Tudo parecia tão bonito, tão calmo, tão relaxante.

Mas não é.

Minha mente estava agitada e aquela voz ao fundo repetia o mesmo discurso há anos. Eu quase podia sentir a sua respiração gélida em minha nuca toda vez que ela falava.

Lembre-se.

Não havia beleza, ou pelo menos eu não a enxergava mais.

Levantei-me e pus-me a andar, não havia rumo, nunca houve. Andei e brinquei distraidamente com a água das folhas até ouvir um som – parecia um lamento. Curioso, pus-me a procurar entre as árvores e a chuva pareceu ficar mais forte enquanto o som ficava cada vez mais abafado. Fiquei cada vez mais intrigado, era como se algo me instigasse, um dever, uma obrigação de encontrar a fonte; repentinamente senti uma mistura de inquietação e súbita aflição e passei a procurar freneticamente.

Ali.

            Por fim, cheguei a uma clareira bastante afastada da trilha, havia uma magnífica árvore no centro ao qual não reconheci de imediato. Minha atenção estava voltada à figura sentada entre as suas raízes.

Uma moça.

Ela era a fonte dos lamentos, tão verdade que uma poderosa angústia dominou meu ser, a mesma angústia nostálgica de uma presença ausente, de algo que deveria estar mas não estava, o Caos dentro da Ordem. Ah! Que tolice a minha: em um mundo naturalmente quebrado tentar questionar os erros da existência

Enquanto me repreendia ela percebeu a minha presença, seus lamentos cessaram instantaneamente assim como a chuva e ela levantou o olhar. Deuses! Aquelas íris pareciam devastar o mundo pela simples intensidade de ser. Por um átimo de segundo senti paz e nem mesmo aquele sussurro gélido podia ser ouvido.

Uma última lágrima rebelde escapou daqueles olhos cintilantes, percorrendo aquela pele macia, brincou no contorno gentil daqueles belos lábios e se perdeu na curva daquele queixo delicado. A mulher se ajeitou e sentou de maneira receptiva com um sorriso educado enquanto me lançava um olhar indagativo e cauteloso. Aproximei-me e sem pensar falei:

Estava procurando você.

– E eu estava te esperando. Por que demorou tanto?

Tive problemas no caminho.

– E como chegou aqui? – A conversa fluía naturalmente e eu respondi verdadeiramente:

– Cometendo erros.

Diálogo/Monólogo

Diálogo/Monólogo

 

Esperei o mundo parar de chover

sentei e observei a água escorrer

mas o sal que essa água levava

estava em doces faces fadadas

ao sal do esforço

ao sal da exaustão

ao sal da dor

ao sal da solidão.

 

 

E quando vi que não haveria fim

sentei e observei um triste motim

da derrota do orgulho das cores

e a vitória do cinza infeliz

o cinza da cidade

o cinza do céu

um cinza da vida

um cinza na vista.

 

 

Deitado, encolhido, largado ao fado

sobrevivo de doces palavras amargas

pois respiram, comem e dormem; é um fato

mas de nada me servem se continuam caladas

as palavras sentidas

são palavras gritadas

é a palavra existir

é a palavra finir.

 

Agora

Agora

Permita-se sentir alguma coisa. Meus olhos fitavam as luzes que passavam pela janela enquanto meu corpo descansava graciosamente no banco. Imóvel. Silencioso. Rígido.

Apenas uma lembrança. Havia uma urgência naquela voz.

Um arrependimento. Senti um solavanco, mas continuei impassível.

Uma saudade, um vazio dominava o brilho dos meus olhos. Por favor, sinta!

Uma alegria.

Uma Dor. O impacto deste último apelo foi visivelmente sutil, quase senti meus olhos entrando em foco. Entretanto, a lágrima que escorreu timidamente deixou um caminho perceptível levando o pouco brilho que aparecera neles.

– Eu não quero – minha resposta foi fraca, mas no fundo sabia que não conseguia sentir nada. A voz na minha mente insistiu:

Não pode viver eternamente no Vazio, não pode esconder para sempre a sua Dor. O vazio que existia na minha cabeça era maculado apenas por essa voz.

– Não preciso de alívio.

A dor da perda…

– EU NÃO QUERO!

A explosão veio acompanhada de imagens rápidas e sucessivas como um caleidoscópio: uma mulher de olhos verdes; a chuva; olhos verdes perdendo o brilho de reconhecimento…

As pessoas ao redor olharam assustadas quando gritei. Mas a Dor era imperativa, a dor da perda de um amor, a dor de saber que ela jamais saberá o que aconteceu, a dor de saber que era culpa minha. Lágrimas rolaram furiosamente em um choro sereno e silencioso. Depois de um tempo o choro parou e a dor se foi.

Mais uma vez fitei as luzes.

Um vento frio fez as pessoas ao seu redor estremecerem, mas nada sentiu, sabia a origem e o motivo. Havia um vazio nos meus olhos. Havia um vazio na minha mente. Havia um vazio no meu coração.