O Escritor e a Lembrança
O escritor terminou de digitar algumas palavras e afastou um pouco a cadeira para que pudesse ler tudo o que já fora escrito. Mecanicamente despejou no copo mais um pouco do uísque caro que ganhara na véspera, bebeu um gole, limpou o canto da boca, acendeu outro cigarro barato. A combinação estava horrível, mas era o que tinha para aquele dia. “Noite”, corrigiu-se ao olhar para a varanda. Às vezes perdia a noção do tempo ao submergir em seus escritos.
A releitura o fez verter algumas lágrimas, talvez pelo cansaço, talvez pelo cigarro, talvez pelas lembranças. Não havia o que pudesse ser feito, contentava-se apenas em tentar amaciar a construção das frases. A Lembrança permanecia forte em sua cabeça.
Próximo a ele uma forma feminina descansava preguiçosamente em uma rede. Seu sorriso enigmático não chegava aos olhos. Ela o observava com atenção embora ele parecesse querer ignorar sua existência. Ela se levantou, caminhou até o lado do escritor, apanhou alguns papéis na mesa e os leu em voz alta:
“– Estava procurando você.”
“– E eu estava te esperando. Por que demorou tanto?”
“– Tive problemas no caminho.”
“– E como chegou aqui?”
“– Cometendo erros.”
“– Ah, meu amor! Como ansiei por este momento.”
“– Não se preocupe querida, Caímos separados, juntos…”
O escritor não conseguiu disfarçar o arrepio, ela conseguia reproduzir perfeitamente as vozes em sua cabeça. Ela, percebendo isso, deu uma risadinha melodiosa e comentou baixinho junto ao seu ouvido:
– Você consegue deixar isso tão trágico… Gostaria que escrevesse algo sobre mim. Como você me descreveria?
Ele a encarou como se fosse a primeira vez, obviamente não era, mas sempre o fazia. Ele a achava linda, desde curva delicada do queixo, os lábios carnudos, a postura de uma rainha, até os olhos escuros e cegos que refletiam estrelas. Olhos de quem já presenciara o nascimento do Universo e o acompanharia até o seu definhar.
Naturalmente ele jamais verbalizaria isto, afinal, era apenas produto da sua imaginação, era o que repetia todas as manhãs. Ele levantou e fechou as janelas, a claridade do sol nascente o estava incomodando. Fingiu interesse no smartphone depois o largou na mesa, acendeu outro cigarro e voltou a escrever no caderno. Ela puxou o cigarro de sua boca e o jogou no cinzeiro, sentou no colo dele, tomou um gole da bebida e disse:
– Até quando vai fingir que não estou aqui? Por quanto tempo vai ignorar minha influência? Até onde vai o seu orgulho? Sua dor? Sua loucura?
Ele escutava de cabeça baixa quando tentou segurar a mão dela. Não conseguiu. Parecia estar tentando agarrar fumaça. Delicadamente ela ergueu a cabeça dele com as mãos até seus olhos se encontrarem.
– Consegue me ver? – Ela perguntou com um olhar de curiosidade, como se tentasse enxergar algo dentro dele. Parecia querer falar com outra pessoa.
– Sim. – Respondeu ele depois de um tempo. – Eu a vejo e escuto.
A sombra da tristeza caiu sobre o rosto dela, agora sentada, próxima a ele, no chão com a cabeça encostada na parede.
– Por que? – Ele pergunta. Sabe que ela entendeu.
– A Lembrança deles não pode se perder.
– E você, quem é?
– Lembrança. – Respondeu ela simplesmente.
Um momento de hesitação. A lâmpada da sala queima, entardece e o céu exibe uma miríade de tonalidades que vão do vermelho ao roxo escuro.
– Por que eu?
– Você já escreveu antes.
O escritor sentiu medo e frio. Era madrugada e o silencio cortante acompanhava o diálogo.
– Eu posso mostrar.
E era isso o que ele temia. Lembrança se aproximou e envolveu a cabeça dele nos seus braços.
– Apenas um vislumbre.
Uma explosão de imagens toma conta da mente dele: um homem de aparência orgulhosa marcha com um exército para a morte certa; uma mulher trajada de vestes douradas caindo de joelhos diante de uma cidade em ruínas; um ser enlouquecido em meio às chamas; luzes e escuridão dançam ao seu redor enquanto um clarão se aproxima…
Lembrança afastou os braços da cabeça do escritor e ele a agarra em um abraço apertado. Surpresa, ela afaga seus cabelos enquanto ele chora silenciosamente. Lágrimas eram algo que ela não poderia produzir, naquele momento era tudo o que mais queria.
– Um Rei, uma Grã-Sacerdotisa, um Cósmico, seja lá o que for, uma vez você já foi chamado de Kr…
O toque da chamada interrompeu a frase dela. Ele secou as lágrimas, atendeu, disfarçou a voz, e desligou. Já estava outra vez revisando o texto. Salvou uma cópia e a enviou a outras pessoas. Olhou para a varanda e percebeu que era manhã outra vez, se preparou para sair de casa a fim de manter seus compromissos. Viu que a mulher estava outra vez na rede, mas ele sabia que ela o acompanharia para onde quer que ele fosse. Sempre fora assim.